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Relatório da Volkswagen não satisfaz vítimas da ditadura

14 de dezembro de 2017

Ex-operários perseguidos boicotam divulgação de estudo encomendado por montadora alemã. Texto aponta colaboração de funcionários da empresa com aparato repressivo, mas conclui que comportamento não era institucional.

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Linha de produção da Volks em São Bernardo do Campo nos anos 1970
Linha de produção da Volks em São Bernardo do Campo nos anos 1970Foto: Volkswagen do Brasil

A Volkswagen divulgou nesta quinta-feira (14/12) um relatório que detalha a colaboração da filial brasileira da empresa com o aparato repressivo do regime militar, que governou o país de 1964 a 1985.

Elaborado por um historiador independente contratado pela empresa, o documento de 114 páginas aponta que a montadora foi "irrestritamente leal" aos militares e que seu próprio aparato de segurança patrimonial facilitou a identificação e prisão de funcionários "subversivos" – sendo ao menos um deles torturado em uma unidade da empresa. A filial também demitiu trabalhadores envolvidos com sindicatos e alimentou e compartilhou com outras empresas "listas negras" com nomes de funcionários.

Leia também: Como a Volks cooperou com a ditadura brasileira

O texto, no entanto, aponta que não foram encontradas provas de uma colaboração institucionalizada da montadora com a repressão estatal. De acordo com o documento, os membros da segurança patrimonial – vários deles eram militares da reserva – agiram por iniciativa própria ao espionar e entregar funcionários ao regime. Não há documentos que indiquem que a diretoria no Brasil deu ordens nesse sentido.

Uma boa parte do conteúdo do relatório já era conhecida. Em agosto, o próprio autor, o historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, já havia adiantado à imprensa suas conclusões preliminares. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) também já havia descrito em 2014 vários dos episódios de repressão relatados no documento. Restava observar como a Volkswagen e os trabalhadores perseguidos pelo regime iriam lidar com o resultado final.

Durante a cerimônia de divulgação, na fábrica da Volks em São Bernardo do Campo (SP), o presidente do grupo no Brasil, Pablo Di Si, ressaltou que foi a primeira vez que uma montadora no país examinou sua história durante o regime. "Lamentamos profundamente os episódios que possam ter ocorrido naquele momento histórico em desacordo com os valores da empresa", disse.

A companhia também descerrou na fábrica uma placa com uma homenagem genérica "a todas as vítimas da ditadura militar" e anunciou parcerias com ONGs. Só que o relatório e o evento não agradaram aos maiores interessados: as vítimas. O episódio sinalizou que ex-trabalhadores perseguidos e a montadora ainda estão longe de uma reconciliação.

"Golpe de relações públicas"

Um dos insatisfeitos é o ferramenteiro e ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Lúcio Bellentani, de 73 anos, que foi torturado em 1972 por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em uma sala da fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo (SP) – sob o olhar de seguranças da empresa.

Para ele, o relatório não passou de um golpe de relações públicas que indica que a montadora quer controlar exclusivamente a narrativa sobre seu passado e não está sendo honesta quando se trata de tomar medidas concretas.

"O relatório é fraco, tem pouca documentação. Não acredito que a empresa tenha aberto todos os seus arquivos para o historiador. O documento não vai além daquilo que já tinham aparecido na perícia do Ministério Público Federal (MPF), que, aliás, era mais contundente", disse.

Bellentani foi convidado pela Volkswagen junto com outros ex-operários perseguidos pelo regime para comparecer a cerimônia de divulgação do relatório- Todos decidiram boicotar o evento e protestaram com placas e faixas do lado de fora da fábrica. "Não iria querer posar para um foto com o presidente da Volkswagen, que vai ser usada por eles como um sinal de 'pronto, resolvemos o passado'", disse o ex-funcionário.

Segundo Bellentani, o principal problema da Volkswagen é que a empresa assumiu isoladamente a tarefa de analisar seu passado, passando ao largo do inquérito aberto pelo Ministério Público em 2015, e sem dialogar com as vítimas sobre qual seria uma compensação adequada.

"Sempre achamos que o melhor canal para o diálogo deveria ter sido feito com a participação do MPF, mas a empresa decidiu fazer tudo por conta própria", disse. "No convite para o evento, a Volks disse que pretende fazer doações para ONGs, mas nós não fomos consultados sobre isso. Acho que esse apoio poderia ser feito, mas queremos voz ativa no processo", concluiu. 

O ex-operário afirmou que recebeu o convite para o evento antes de ter acesso ao relatório. "Queriam que fossemos lá sem saber o que estava na versão final. Isso não é algo sério", disse. Ele conta que os trabalhadores tiveram que exigir da Volkswagen acesso ao relatório antes da cerimônia.

Nada de concreto

O procurador do MPF Pedro Machado, que é responsável pelo inquérito aberto em 2015, disse que ainda não leu o relatório, mas indica que a divulgação não encerra o assunto e que a empresa deveria se empenhar mais em chegar a um acordo negociado.

"Um pedido de desculpas e eventuais compensações deveriam contar com a participação dos trabalhadores e do MPF, que representa a sociedade. A matriz alemã da Volkswagen já tem experiência no diálogo quando se trata de examinar seu passado e fazer compensações – basta ver o que aconteceu em relação ao papel da Volks no Holocausto. Infelizmente, essas lições não parecem estar sendo aplicadas no Brasil", disse. 

Segundo Machado, apesar de rotineiramente a imprensa publicar notícias de que a Volkswagen está negociando compensações, nenhuma proposta foi apresentada pela empresa ao MPF.

"Inicialmente, a postura da empresa, quando o inquérito foi aberto, foi de 'nós não fizemos nada de errado, que nenhum problema havia ocorrido'. Aos poucos, essa postura parece ter mudado, mas eles ainda não apresentaram nada de concreto", disse.

Pablo Di Si
Pablo Di Si, presidente da Volks do Brasil, "lamentou" papel de funcionários da montadora durante o regime militarFoto: DW/C. Papaleo

De acordo com o procurador, as compensações, no caso, não seriam em valores individuais para as vítimas, mas algo coletivo, como a criação de uma fundação ou memorial com a participação dos ex-funcionários.

O procurador pretende agora juntar o relatório ao inquérito. "O Brasil fez muito pelo crescimento da Volkswagen, a empresa precisa se empenhar mais no inquérito”, concluiu.

Durante a cerimônia, Di Si, o presidente da Volkswagen no Brasil, indicou que a empresa já abraçou a tese sobre a ignorância da direção em relação à colaboração da sua segurança patrimonial com a repressão. Ele evitou mencionar o inquérito.

"Reconhecemos que o processo da ditadura foi muito difícil e que pessoas da empresa colaboravam com os militares. Mas isso não configura, como explica o relatório, uma atitude institucionalizada por parte da empresa", disse.

As conclusões

Após ser preso na linha de produção e espancado em uma sala da montadora, o ex-operário Bellentani foi levado para a sede do Dops em São Paulo. Ele só saiu da prisão um ano e meio depois. Seu caso é o mais chamativo do relatório.

Segundo o historiador Kopper, a segurança industrial monitorava atividades de oposição e facilitou a prisão de no mínimo sete empregados. Outras cem pessoas que participaram de greves foram prejudicadas ao terem seus nomes colocados em "listas negras", que eram então compartilhadas com outras empresas. Demitidas, elas dificilmente arrumavam outro emprego.

A pesquisa apontou que em 1969 a colaboração da empresa com os militares se deu por meio da atuação do então chefe do departamento de segurança patrimonial da empresa, Ademar Rudge, um ex-oficial das Forças Armadas.

Já a lealdade da direção com o regime se deu no campo econômico e no entusiasmo com as políticas do governo. O documento aponta como a empresa se beneficiou de medidas autoritárias, como a repressão a greves e o controle sobre salários.

"A Volkswagen do Brasil e, em última instância também a Volkswagen AG (matriz), aproveitaram a suspensão dos direitos trabalhistas elementares", apontou o texto.

Segundo Kopper, a matriz não se interessava no que acontecia no Brasil durante a maior parte do regime militar. Mas isso mudou em 1979, quando um grupo de operários brasileiros foi até Wolfsburg durante um congresso para confrontar o então presidente da empresa, Toni Schmücker, sobre as prisões e demissões.

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