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História

O alemão que revolucionou os estudos indígenas no Brasil

João Pedro Soares do Rio de Janeiro
11 de dezembro de 2018

Considerado o pai da etnologia no país e pioneiro da linguística, Curt Nimuendajú dedicou mais de 40 anos ao estudo dos povos indígenas brasileiros. Seu acervo foi destruído no incêndio do Museu Nacional.

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O pesquisador alemão, sentado, durante expedição no Brasil
O pesquisador alemão, sentado, durante expedição no BrasilFoto: Museu de Arqueologia e Etnologia/USP

Após a morte do pesquisador Curt Nimuendajú, em 1945, houve uma intensa disputa entre instituições científicas para comprar o seu acervo, um dos mais importantes sobre os indígenas do Brasil. Afinal, por mais de quatro décadas, o alemão que se naturalizou brasileiro realizou trabalhos de imersão em comunidades de todo o território nacional. Há exatos 100 dias, completados nesta terça-feira (11/12), seu pequeno tesouro foi destruído no incêndio que atingiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

"Nimuendajú é o pai fundador da etnologia brasileira, com obra mais alentada e relevante que a de todos nós que o sucedemos." A definição do famoso antropólogo Darcy Ribeiro sinaliza a importância da contribuição do pesquisador de origem alemã para o estudo dos povos indígenas no Brasil.

Aos 20 anos de idade e sem formação acadêmica, Nimuendajú, que então ainda se chamava Kurt Unckel, deixou um próspero emprego na fábrica de lentes da Zeiss, na Alemanha, onde havia recebido treinamento de mecânica ótica. Com dinheiro emprestado pela irmã, ele rumou para o Brasil.

De acordo com informações encontradas pela antropóloga Elena Welper, que estudou intensamente a vida e a obra do pesquisador, a motivação mais forte para a viagem do jovem ao Brasil foi a realização de um sonho de infância.

Em depoimentos, amigos e familiares relatam que, desde muito cedo, ele demonstrou interesse "exclusivo" por índios e mapas. Além de passar horas na sala de leitura de Jena, sua cidade natal, estudando intensamente revistas e mapas, ele liderava "brincadeiras de índios" que incluíam expedições de caça e acampamentos.

Pouco se sabe sobre o que o jovem fez nos dois primeiros anos de sua estadia, embora haja indícios de que tenha trabalhado em uma loja de ferragens de um alemão e participado de uma expedição ao sertão paulista.

Em 1905, ele finalmente se juntou aos apapocuva, povo guarani do estado de São Paulo que hoje é conhecido por nhandeva. Já em sua primeira imersão, que durou dois anos, o pesquisador produziu uma monografia cujo valor é reconhecido até hoje, A lenda da criação e destruição do mundo na religião dos apopokuva-guarani, publicada em 1915.

Após passar por um ritual de batismo nessa comunidade, recebeu o nome indígena que adotou oficialmente, Nimuendajú – "aquele que fez sua morada". O primeiro nome foi "abrasileirado" para Curt, e, em 1922, ele se naturalizou brasileiro, tendo abandonado o sobrenome original.

A profundidade do contato com as comunidades estudadas se tornou a principal marca de seu trabalho, como destaca o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor e pesquisador do Museu Nacional.

"Nimuendajú foi bastante inovador em relação ao modo de realizar etnografias. Ele foi um investigador de campo absolutamente dedicado aos índios, tinha uma relação de imersão muito forte, e vivia com eles dentro de um processo de adaptação quase absoluta aos modos de ser dos indígenas", afirma.

"Não é um pesquisador que vem e observa as coisas da varanda para o centro da aldeia, mas alguém que cria uma relação muito densa e forte com essas populações. Curt realizou uma etnografia radical, solidária, comprometida com os índios e a defesa de seus interesses", acrescenta.

Embora não tivesse formação específica em sua área de atuação e atuasse de forma independente, sem vínculos com instituições científicas, não tardou para que o pesquisador despertasse interesse pelo seu trabalho no exterior. A principal fonte de renda de Curt vinha justamente da venda de coleções de objetos culturais indígenas para instituições de outros países, em especial para o Museu de Gotemburgo, na Suécia.

Suas expedições também foram apoiadas por instituições brasileiras, como o Serviço de Proteção aos Índios, órgão que deu lugar à atual Fundação Nacional do Índio (Funai), o Museu Nacional e o Museu Paraense Emílio Goeldi.

Entre os apoios internacionais, o mais importante para a afirmação e reconhecimento de sua obra veio de Robert Lowie, um dos grandes nomes da antropologia americana. Os dois trocaram cartas durante anos, sem nunca terem se conhecido. Graças a essa aproximação, Nimuendajú pôde publicar nos Estados Unidos suas monografias sobre os povos Apinayé, Xerente, Canela e Tikuna.

O mapa de Nimuendajú

Por onde passava, o pesquisador se esforçava para aprender a falar e documentar a língua falada pelo grupo estudado. Dessa forma, deu o pontapé inicial nos estudos linguísticos no Brasil e começou a construir a obra que é considerada um de seus maiores legados: o Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes, cuja versão final data de 1944 e se encontrava no Museu Nacional.

O trabalho foi publicado apenas em 1981 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por empenho do antropólogo George Zarur, que escreveu a seguinte descrição sobre a obra:

O mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes, dos anos 1940
O mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes, dos anos 1940Foto: IPHAN

"O mapa de Nimuendajú é um gigantesco banco de dados sobre a distribuição no espaço e no tempo das tribos indígenas brasileiras. É testemunho do estado da arte da etnologia de seu tempo. Foi artesanalmente elaborado com os recursos da época, o desenho a nanquim. Reúne, em sua última versão, praticamente toda a literatura então disponível para a identificação do nome das tribos indígenas brasileiras atuais e extintas, conhecidas até a data sua elaboração, sua classificação linguística, sua localização atual, sua localização histórica e, em muitos casos o sentido de suas migrações."

Antes da chegada de Nimuendajú ao Brasil, já havia uma tradição de pesquisa com povos indígenas feita por viajantes exploradores vindos especialmente da Alemanha, como Carl von Martius, Johann von Spix e Karl von den Steinen, no século 19. Todos eram ligados às ciências naturais e, portanto, o foco nessas populações era secundário.

Mesmo assim, ao encontrá-las, eles fizeram descrições preliminares das línguas e coletaram listas de palavras – um trabalho multidisciplinar que constituía uma tradição da ciência alemã, de acordo com Evandro Bonfim, antropólogo especialista em línguas indígenas do Museu Nacional.

"Muito do método de trabalho deles era impressionista. Já o Nimuendajú, embora não tenha usado ainda o alfabeto fonético internacional, que traz a convenção dos sons, utilizou convenções muito consistentes de um povo para o outro", diz.

"As descrições e teorizações que ele fez sobre línguas indígenas com as quais teve contato são todas muito próximas do que se veio a encontrar depois. É um material realmente precioso, muito apurado, que, em muitos casos, pode ser considerado a principal fonte de referência para muitas línguas", detalha.

Acervo parcialmente digitalizado

O acervo de Nimuendajú só não foi totalmente perdido graças ao empenho de pesquisadoras do Museu Nacional que vinham se dedicando à digitalização de parte do material antes do incêndio.

Descendente de alemães, Welper notou, durante a pesquisa de mestrado sobre o pesquisador, que o arquivo era subaproveitado devido à barreira linguística – muitos diários e cartas estavam escritos em alemão – e à fragmentação dos itens, que não foram tratados de forma integral desde sua chegada ao museu.

Por essa motivação, a antropóloga dedicou parte do trabalho de pós-doutorado à digitalização dos manuscritos, iniciativa que só havia sido feita de forma "avulsa" por outros pesquisadores que os utilizaram para estudo.

"Constatei que o arquivo era riquíssimo e mal organizado. Precisava ser disponibilizado para os alemães a fim de ser melhor aproveitado, mas as condições de consulta ao material eram precárias. Logo, a disponibilização online traria maior difusão daquele conhecimento e possibilidades de trabalhar o arquivo, além de facilitar a consulta e evitar o desgaste pelo manuseio constante dos originais", conta Welper, que estima ter digitalizado 30% do total de manuscritos que compunham o acervo etnográfico.

No espólio de Nimuendajú comprado pelo Museu Nacional em 1950, havia um acervo fotográfico composto por 457 fotos em papel – destruídas no incêndio – que tinham sido digitalizadas e reunidas em um DVD chamado Índios do Brasil e o Olhar de Curt Nimuendajú (2012), de autoria das professoras Marília Facó e Tânia Clemente.

Já os 544 negativos, sendo 296 de vidro e 248 flexíveis, estão em processo de restauração por inciativa de Clemente, que estuda línguas indígenas desde 1981. Embora os originais também tenham se perdido, a captura digital dos arquivos já estava concluída. Ela aguarda apoio financeiro para concluir as etapas restantes, de alto custo.

"A importância de digitalizar esses negativos é que ali há imagens inéditas, que não foram reveladas, nós não temos cópias em papel. Quero concluir logo esse trabalho de restauração e publicar essas imagens, para a comunidade acadêmica trabalhar como quiser, mas faltam recursos", diz Clemente

A professora coordena o Fundo Documental Curt Nimunedajú, que reúne uma série de trabalhos de doutorado com o objetivo de avaliar o peso da contribuição do pesquisador para a área da linguística.

"Ele não é referido como um autor nesse campo, mas eu considero o trabalho dele como fundador na história do pensamento linguístico no Brasil", afirma.

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