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A alma soterrada do Brasil

20 de novembro de 2019

Desde que retomaram suas terras às margens do São Francisco, em 2012, os moradores do Quilombo Croatá vêm resistindo a tentativas criminosas de expulsá-los novamente. Dona Enedina é um desses resistentes brasileiros.

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Dona Enedina
Dona Enedina: resistente, bem-humorada, honesta, diligente e generosaFoto: F. Kopp

Estive no mais profundo Brasil, numa das regiões mais secas e pobres do país. Ela fica no centro dessa gigantesca nação, e, no entanto, é afastada e isolada. Possivelmente apenas poucos brasileiros a conhecem.

O norte de Minas Gerais é marcado pelo calor, solo árido, espinhos e poeira. E por uma injustiça que já dura séculos. É a terra dos latifundiários e dos antigos coronéis. É também, porém, a terra de lavradores e pescadores, que se impõem contra a natureza impiedosa. E contra a discriminação histórica.

Através da paisagem onde predominam o amarelo e marrom, corre o poderoso Rio São Francisco, o "Velho Chico", a artéria vital da região. Tranquilo e belo, ele flui por seu largo leito, mas todos que o conhecem dizem que é preciso atentar para sua força e respeitá-la, pois, quem o subestima é arrastado e engolido.

Na margem do "Velho Chico" vive Dona Enedina. Ela construiu uma casa simples, de barro e madeira, e cobriu-a de telhas de argila que parecem ter sido modeladas sobre a coxa do artesão. A casa tem uma varanda sombreada, com dezenas de plantas, uma cozinha com um fogão de barro e um pequeno banheiro, onde ela se banha com a água do rio.

A casa de Dona Enedina fica num quilombo chamado Croatá, onde vivem 25 famílias de lavradores e pescadores. Seus antepassados foram escravos que construíram os palácios do Brasil, araram seus campos, morreram em suas minas de ouro, cozinharam para os senhores e criaram os filhos deles. Eles foram forçados a isso, mas ninguém jamais lhes pediu desculpas, agradeceu, muito menos pagou uma reparação.

Mas Enedina Souza dos Santos não se queixa. Ela é orgulhosa, e trabalha. "Eu remo e pego peixe. Eu corto madeira, cubro o telhado, construo paredes e coloco canos d'água. Eu planto feijão, milho e mandioca. Eu crio animais e cuido das crianças. Eu sei usar a foice, o machado e a enxada. Eu sou uma mulher macho, e ninguém vai me tirar da minha terra."

Quando a visitei, Dona Enedina estava dando de comer aos porcos. Alguns anos atrás, alguém lhe presenteou uma leitoa, e, desde então, ela criou e vendeu dúzias de porcos. Além disso, tem incontáveis galinhas tagarelas, cães e dois gatinhos que criou na mamadeira, depois que uma ave de rapina matou a mãe deles. Dona Enedina também tem uma roça do tamanho de meio campo de futebol, e uma horta circular. Ela gostaria de começar com a semeadura, mas desde abril não chove.

Colunista Philipp Lichterbeck
Colunista Philipp Lichterbeck vive no Rio desde 2012Foto: F. Kopp

Dona Enedina também pesca no São Francisco. Mas, diz, os peixes estão doentes desde que a lama tóxica do rompimento da barragem de Brumadinho contaminou também o rio: "O 'Velho Chico' está sofrendo!"

Aos 51 anos, Dona Enedina é uma empreendedora exemplar, além de mãe de seis filhos. É casada com um homem branco, oito anos mais novo que ela. Os dois maridos anteriores, ela mandou embora, pois a traíram. "Aqui, quem dita o tom sou eu", afirma e ri.

Tudo o que ela construiu está ameaçado. A massa falida da Atrium – uma fazenda falida – entrou na Justiça com um pedido de reintegração de posse contra a comunidade de Croatá. Segundo os moradores, a massa falida inclui latifundiários, especuladores e grileiros de terras públicas em áreas da União no São Francisco.

Por vezes, aparecem no quilombo capangas armados para perturbar Dona Edina e os outros. Esses homens, contam várias fontes, recebem ordens do empresário Walter Arantes. Ele é um dos donos da rede de supermercados BH e aliado político do ex-governador Newton Cardoso (MDB), hoje aposentado. Arantes tem vários processos abertos contra ele, a maioria por crimes ambientais, e chegou a ser preso no âmbito da Lava Jato em 2018. Em Belo Horizonte, ele responde por "enriquecimento ilícito", entre outras acusações.

"Esses grileiros não me impressionam com as picapes Hilux deles", desafia Dona Enedina. "Uma vez eles vieram, mas a gente tinha construído uma barricada. Quando viram as nossas foices, deram no pé."

Em 1979, o Rio São Francisco inundou o Quilombo Croatá, e seus moradores fugiram. Quando voltaram, um latifundiário havia se apoderado das terras. Só em 20008 encontraram coragem para retornar – e foram expulsos. Em 2012, Dona Enedina e os demais tentaram de novo e começaram a construir casas.

"Os fazendeiros vieram com escavadeiras e helicópteros, para nos ameaçar", lembra Dona Enedina. E o Estado? Pôs-se do lado dos fazendeiros, mandou a Polícia Militar para intimidar os moradores e negou os serviços públicos. Até hoje a comunidade Januária, a que Croatá pertence, não instalou eletricidade no quilombo. Assim, é à luz de lampião que nos reunimos à noite, enquanto Dona Enedina preparava feijão, arroz e galinha no fogão.

"O mais importante para a gente poder ficar foi o Conselho Pastoral dos Pescadores da Igreja Católica", conta. "As irmãs do Conselho nos ensinaram que temos direitos. Não os conhecíamos, antes."

Dona Enedina é secretária na Associação dos Quilombolas. É uma das líderes da resistência. A pequena comunidade se encontra regularmente para se aconselhar e cantar. "Não somos grileiros, especuladores ou invasores", afirma Dona Enedina. "Croatá tem mais de 100 anos de história. Nós somos posseiros!"

Enedina Souza dos Santos é uma mulher que é como a alma soterrada do Brasil: resistente, bem-humorada, honesta, diligente e generosa. O Brasil seria um país melhor com mais Enedinas.

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Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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