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"Depressão é sofrimento compatível com o neoliberalismo"

22 de fevereiro de 2021

Em entrevista, psicanalista e professor da USP Christian Dunker fala sobre o contexto atual da doença que é tema de seu novo livro, "Uma Biografia da Depressão", e que atinge 5,8% dos brasileiros.

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Christian Dunker
Christian Dunker: "O neoliberalismo trouxe a ideia de que as vidas devem ser apreciadas, entendidas e interpretadas como se o eu fosse uma empresa"Foto: Itamar Jr/ Divulgação

A depressão é um problema sério no Brasil. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença afeta 5,8% da população, um índice maior do que a média mundial (de 4,4%). Nas Américas, o país só fica atrás dos Estados Unidos, com 5,9%.

De olho nesse fenômeno, o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto e Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) resolveu esmiuçar as origens, a história e o contexto atual da depressão.

Ele encontrou diversas explicações contemporâneas para o agravamento do transtorno: dos discursos neoliberais de meritocracia — em que sucesso e fracasso tendem a ser individualizados — à crise dos últimos anos em que os horizontes prometidos deixaram de ser cumpridos. Deparou-se também com questões como a ascensão do neopentecostalismo, com igrejas vendendo a ideia de prosperidade. E transformou isso no livro Uma Biografia da Depressão, lançado em fevereiro pela Editora Planeta.

Dunker concorda que as redes sociais contribuem para, ao expor imagens e histórias perfeitas, agravar a depressão. Mas reconhece também o seu papel positivo. "Não devemos demonizar as redes sociais. Porque elas estão fornecendo práticas de reconexão de contato e de narrativização de sofrimento, isso tudo está disponível", diz ele.

DW Brasil: Segundo a OMS, 5,8% dos brasileiros sofrem de depressão, um índice maior do que a média mundial (de 4,4%). Nas Américas, só perdemos para os Estados Unidos, com 5,9%. A que pode ser atribuído isso?

Christian Dunker: De fato, o Brasil tem a maior taxa da América Latina. É também preocupante porque se trata de uma taxa crescente, se pegarmos estudos comparativos da OPAS [Organização Pan-Americana da Saúde] e da OMS. Isso se associa com o alto índice de ansiedade, especialmente nas grandes metrópoles. Podemos atribuir isso a pelo menos quatro fatores. Primeiro, a forma como as transformações da vida laboral aconteceram no Brasil de dez anos para cá, interrompendo um ciclo de alta mobilidade social — com muitas pessoas passando da pobreza para a classe média, ou da condição de miseráveis para a condição de pobres. [Essa ascensão] projetou uma perspectiva de continuidade de crescimento, o que não se revelou. A ideia de criar novos horizontes e, depois, vê-los decepcionados concorre para a experiência da depressão.

O segundo fator está ligado aos modos de criação e a compreensão da família brasileira. A família brasileira deixou de ser ou está mudando seu lugar social. Cada vez menos funciona como um lugar de reserva para conflitos sociais, tanto porque houve uma politização intensa nos últimos cinco anos, como porque emergiu uma nova forma de religiosidade, como o neopentecostalismo de resultados, que estimula fortemente a orientação para o sucesso.

Outro fator é que o Brasil se tornou rapidamente um consumidor pesado de plataformas de redes sociais, o que está associado com o aumento do sentimento de solidão, com certas crises narcísicas, especialmente com o reconhecimento um pouco deformado das diferenças sociais que a gente tem no país. O último elemento, mais histórico, é que o Brasil é um dos países que têm a pior distribuição de renda, não só [do ponto de vista] financeiro, mas também cultural e social. Essa grande desigualdade social, demonstrada pelos péssimos índices [sociais], ela depende de narrativas para ser suturada — da narrativa do mérito, da educação como elemento de prosperidade para as pessoas... Isso foi seriamente abalado, nos últimos cinco anos.

Podemos dizer que a depressão é a grande doença do mundo contemporâneo?

Dá para dizer, sim. É a grande doença do século 20, não sei se do século 21. […] Não é um fenômeno brasileiro. A depressão é a forma de sofrimento compatível com o neoliberalismo. Começa a prosperar nos anos 70, com a implantação prática das ideias da escola de Chicago, e bom, com a ideia de uma autoavaliação permanente, da individualização dos fracassos, da excessiva idealização sobre resultados e sobre si mesmo. A ideia de que a produtividade é fator fundamental na apreciação da vida pelo próprio indivíduo e de que as vidas devem ser apreciadas, entendidas e interpretadas como se o eu fosse uma empresa. Tudo isso concorre para a variedade de depressões que a gente vai ter.

Depressão tem cura?

Um dos problemas é que a gente tende a achar que ela é um único transtorno. Olhando de perto para o DSM [como é conhecido o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, por causa da sigla em inglês], são 17 formas de depressão descritas, muito mal descritas. Então é uma doença? Tem cura? Depende de qual. E depende de qual o conceito de cura que a gente está mobilizando aqui. Mas, sim, depressão tem tratamento, muitas vezes não é um tratamento rápido, não é um tratamento de resposta inicial. Existem muitas formas de depressão, mas pensando numa resposta mais unificada, em geral é muito bem-vinda a combinação entre  medicação e psicoterapia, além de alguma prática de revinculação social, uma prática de transformação na relação do corpo com os prazeres.

Como reconhecer um quadro depressivo?

Tem alguns sinais. O principal é a anedonia, a perda de satisfação com as coisas, com o outro, portanto um certo recuo do estar junto com o outro. A pessoa não quer sair de casa, não quer ver os amigos, a família, tem alteração de sono, de alimentação, de libido. […] Tristeza, recolhimento do humor, uma hora estar chorando e na outra muito alegre… Tudo isso pode comportar o quadro depressivo.

Segundo a OMS, em 2030 a depressão deve se tornar a doença mais comum no mundo. A que podemos atribuir isso?

Isso pode ser atribuído a uma espécie de alargamento dos critérios diagnósticos, à compatibilidade da depressão com o modo neoliberal de produção e o modo digital de vinculação com os outros, especialmente aquele que despersonaliza a relação.

As pessoas tendem a ficar mais deprimidas em um mundo de super-exposição nas redes sociais e onde impera um discurso quase de felicidade obrigatória? Como evitar cair nesse paradigma?

Não devemos demonizar as redes sociais. Porque elas estão fornecendo práticas de reconexão de contato e de narrativização de sofrimento, isso tudo está disponível. Mas o nosso funcionamento em bolha, em lacração, em negacionismo, em redução do tamanho do mundo e, portanto, redução da diversidade […], à medida que você cria uma realidade artificial excluindo isso você se fragiliza para os transtornos mentais em geral, e a depressão em particular. Uma dica importante é aumentar o tamanho do seu mundo digital e tentar reduzir a expansão do narcisismo do eu, do tamanho do eu, as idealizações, as histórias maravilhosas, os roteiros de sucessos, os coachs de resultados extraordinários. Isso tudo faz mal.