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Alemanha quer dar segurança jurídica a "famílias de amigos"

Helen Whittle
14 de fevereiro de 2024

Nova lei deverá trazer proteção jurídica a pessoas que vivem juntas e querem assumir responsabilidade umas pelas outras fora do casamento. Entre beneficiados estão idosos, mães e pais solteiros e comunidade LGBTQ+.

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Duas pessoas adultas vistas pelas costas enquanto olham a paisagem
Idosos não casados que vivem juntos e se ajudam mutuamente estão entre os beneficiados pela nova leiFoto: Neundorf/Kirchner-Media/picture alliance

A maneira como as pessoas vivem, amam, criam filhos e envelhecem está mudando na Alemanha. Mas a questão de como cuidar das pessoas que se ama ainda é significativa para uma sociedade na qual uma em cada quatro pessoas se declara solitária.

É nesse contexto que o governo alemão, formado por social-democratas, verdes e liberais, está propondo o que o ministro da Justiça, o liberal Marco Buschmann, descreveu como "provavelmente a maior reforma do Direito de família em décadas".

Trata-se de um novo modelo jurídico para pessoas que assumem responsabilidade de longo prazo umas pelas outras sem serem casadas ou terem relações de parentesco. Dentro da estrutura da chamada comunidade de responsabilidades, pessoas solteiras que decidem morar juntas devem ser capazes de se apoiar melhor na vida cotidiana.

O modelo é voltado para grupos de duas a seis pessoas que moram juntas e querem ajudar umas às outras, por exemplo numa emergência médica. Do ponto de vista jurídico, o objetivo é criar uma estrutura para proteger legalmente esses relacionamentos. Para esse fim, será introduzida a Lei sobre a Comunidade de Responsabilidades.

A natureza exata do relacionamento entre essas pessoas não está especificada, mas deve haver uma "relação pessoal real de proximidade". Um controle pelo Estado para verificar se isso de fato ocorre não está previsto. O exemplo dado pelo Ministério da Justiça é o de duas mulheres idosas que vivem sem um parceiro ou parente e apoiam uma à outra.

Não é um "casamento light"

Buschmann afirma que a comunidade de responsabilidades ajudará a facilitar a vida de idosos e de mães e pais solteiros que vivem juntos e querem ajudar uns aos outros. Seu relacionamento poderá ser garantido por meio de uma nova forma jurídica.

Isso é algo "completamente diferente" do casamento, enfatiza Buschmann. Os membros dessas uniões não querem estar ligados por sentimentos amorosos em todos os aspectos. É por isso que não se trata de uma "versão light do casamento", diz.

Pessoas idosas em volta de uma mesa. Uma senhora corta legumes.
Proposta visa facilitar a vida de idosos e de mães e pais solteiros que vivem juntos e querem ajudar uns aos outrosFoto: picture alliance/dpa

O encarregado do governo alemão para a comunidade LGBTQ+, Sven Lehmann, também vê progressos para as pessoas da comunidade LGBTQ+ que quiserem ter segurança jurídica em suas famílias de escolha. "Para lésbicas, gays ou transgêneros, muitas vezes é a família de escolha que toma o lugar da família de origem devido à rejeição enfrentada após a saída do armário", afirmou Lehmann ao grupo de mídia Redaktionsnetzwerk Deutschland. "Para as pessoas queer, a comunidade de responsabilidades é uma forma de dar segurança jurídica à sua família de escolha."

Pelos planos do governo, as comunidades de responsabilidades devem ser seladas perante um tabelião, na forma de um contrato, que pode ser encerrado, também perante um tabelião.

O governo enfatiza que os regulamentos do casamento não serão afetados, assim como a proteção especial dada a ele e à família pela Lei Fundamental (Constituição alemã). Uma comunidade de responsabilidades também não terá qualquer efeito sobre o relacionamento entre pais e filhos, nem haverá qualquer isenção fiscal, nem quaisquer consequências sob a lei de herança ou  o pagamento de pensões alimentícias.

Associações criticam

Entretanto, associações de idosos e de mães e pais solteiros estão céticas quanto à diferença que isso realmente fará na vida das pessoas. "Não acho que isso mudará muito para os idosos", diz Regina Görner, presidente da Associação Nacional de Organizações de Idosos (BAGSO). "Já existem instrumentos em vigor, como a procuração de saúde, que são menos burocráticos e demorados do que procurar um tabelião."

Na Alemanha, a probabilidade de que um idoso more sozinho é o dobro da média da população. Cerca de 34% das pessoas com 65 anos ou mais moravam sozinhas em 2022, de acordo com as seguradoras privadas de saúde. Até 5,75 milhões de pessoas poderão precisar de cuidados até 2030.

Homem e mulher idosos riem enquanto olham foto, em área no campo
Na chamada "comunidade de responsabilidades", solteiros que moram juntos devem ser capazes de se apoiar melhor na vida cotidianaFoto: Britta Pedersen/dpa/picture alliance

Görner diz que seria mais útil uma reforma da lei de licença para cuidadores, que atualmente só permite que familiares imediatos tirem licença remunerada do trabalho para cuidar de um parente doente.

Heidi Thiemann, fundadora de um grupo que defende os direitos de mães e pais solteiros, tem preocupações semelhantes. "As mães e pais solteiros precisam de coisas muito diferentes para melhorar sua situação. O que se debate aqui é uma oferta que ninguém está pedindo", diz.

Atualmente, cerca de 33% das crianças que nascem na Alemanha são filhas de mães solteiras, de acordo com o instituto econômico alemão IW, que estima que a taxa de divórcio será de 39,9% em 2021.

Brecha para a poligamia?

Apesar da declaração de que não se trata de um "casamento light", Thiemann observa que as pessoas que estão em relacionamentos românticos, mas não querem se casar, poderiam usar o novo mecanismo legal como uma alternativa ao casamento, mas com muito menos proteções legais, em prejuízo para as mulheres.

"As mães, que ainda assumem a maior parte do trabalho de cuidado, ficariam em situação muito pior do que se estivessem num casamento", argumenta. "O governo diz que a reforma não trará benefícios fiscais, mas não descarta desvantagens fiscais", acrescenta.

As críticas à reforma também vieram dos partidos de oposição, os conservadores CDU e CSU, e da Alternativa para a Alemanha (AfD), de ultradireita. O porta-voz de políticas jurídicas da CDU, Günter Krings, sugeriu que o novo mecanismo legal poderia abrir uma brecha para a poligamia, que atualmente é reconhecida na Alemanha apenas para casamentos poligâmicos celebrados legalmente no exterior. "Ninguém poderá controlar a natureza da ligação entre as pessoas nessas 'comunidades de responsabilidades'", disse ele ao Redaktionsnetzwerk Deutschland.

Já o site Queer.de, voltado à comunidade LGBTQ+, elogiou a iniciativa do governo, que chamou de sensata, e criticou os partidos de oposição conservadores CDU e CSU por a criticarem.