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Bolsonaro usa ONU como palanque e ataca Lula

20 de setembro de 2022

Atrás nas pesquisas eleitorais, presidente usa discurso na Assembleia Geral da ONU para lançar ataques a rival e pintar retrato enganador das ações do seu governo nas áreas ambiental, da saúde e de proteção das mulheres.

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 Jair Bolsonaro discursa na ONU
O último discurso de Bolsonaro na ONU? Discurso do presidente ocorreu menos de duas semanas antes do primeiro turnoFoto: Amr Alfiky/REUTERS

Em desvantagem nas pesquisas eleitorais, o presidente Jair Bolsonaro usou seu discurso de abertura da 77ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, nesta terça-feira (20/09), para fazer elogios ao seu governo e criticar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato favorito para vencer o pleito eleitoral em 2 de outubro.

O líder brasileiro ainda tentou pintar um retrato idílico da sua gestão, direcionou falas ao eleitorado feminino e católico – segmentos em que aparece em desvantagem em relação a Lula – e fez afagos à sua própria base de ultradireita, mencionando sua oposição à "ideologia de gênero" e ao aborto e sua defesa do armamento da população.

Embora não tenha citado Lula nominalmente, Bolsonaro abordou casos de corrupção na Petrobras e as condenações sofridas pelo presidenciável do PT. No entanto, ele não mencionou que o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou posteriormente os julgamentos de Lula e que declarou suspeito o juiz que lidou com os processos, Sergio Moro, que viria a se tornar ministro do governo do atual ocupante do Planalto.

"No meu governo, extirpamos a corrupção sistêmica que existia no país. Somente entre o período de 2003 e 2015, onde a esquerda presidiu o Brasil, o endividamento da Petrobras por má gestão, loteamento político em e desvios chegou a casa dos US$ 170 bilhões de dólares. O responsável por isso foi condenado em três instâncias por unanimidade. Delatores devolveram US$ 1 bilhão de dólares e pagamos para a bolsa americana outro bilhão por perdas de seus acionistas. Esse é o Brasil do passado", disse Bolsonaro.

Bolsonaro omitiu que seu governo enfrentou vários casos de suspeita de corrupção: na compra de vacinas, na distribuição de verbas do Ministério da Educação e na montagem e execução do chamado "orçamento secreto", usado para garantir apoio parlamentar.

A própria família presidencial enfrenta questionamentos sobre a compra de dezenas de imóveis em dinheiro vivo e persistentes suspeitas que envolvem desvio de salários de ex-assessores, as chamadas "rachadinhas".

Segundo pesquisa Ipec divulgada na segunda-feira, Bolsonaro está 16 pontos atrás de Lula na disputa para o Planalto. O petista apareceu com 47% das intenções de voto, contra 31% do presidente, que permanece estagnado e corre o risco de perder já no primeiro turno.

Elogios à sua gestão

O presidente ainda elogiou a gestão brasileira da pandemia, destacando números da vacinação no país, que avançaram ao longo de 2021 apesar de ele ter estimulado uma paranoia infundada contra os imunizantes e se recusar a dar o exemplo ao evitar ser imunizado. O Brasil já registrou mais de 685 mil mortes por covid-19, a segunda maior marca oficial entre todos os países do mundo.

"Alcançamos um amplo programa de imunização, inclusive com produção doméstica de vacinas. Somos uma nação com 210 milhões de habitantes e já temos mais de 80% da população vacinada contra a covid-19", disse Bolsonaro.

Ao longo da crise, Bolsonaro reiteradamente minimizou a gravidade da pandemia de covid-19, doença que chamou de "gripezinha". Além de criticar as vacinas, ele atuou sistematicamente para sabotar medidas de isolamento social e promoveu tratamentos ineficazes. Seu governo foi amplamente criticado por demorar para comprar imunizantes de laboratórios conceituados ao mesmo tempo que abria as portas para empresas de fachada suspeitas de participação em esquemas de corrupção. 

O presidente ainda mencionou em tom de autoelogio a criação do auxílio-emergencial durante a pandemia, novamente evitando mencionar que seu governo havia proposto inicialmente um valor que consistia em apenas um terço do que acabou sendo efetivamente pago e que as parcelas que chegaram a R$ 600 foram resultado de articulação do Congresso.

Lula em Curitiba
Bolsonaro usou palco na ONU para direcionar críticas ao ex-presidente Lula, o favorito a vencer as eleições, segundo pesquisasFoto: Silvio Avila/AFP

Guerra na Ucrânia e sanções contra Rússia

Ao abordar a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, Bolsonaro evitou criticar o Kremlin, optando por se posicionar contra as sanções impostas por países do Ocidente contra o regime de Vladimir Putin.

"Somos contra o isolamento diplomático e econômico. As consequências do conflito já se fazem sentir nos preços mundiais de alimentos, de combustíveis e de outros insumos. (...) Apoiamos todos os esforços para reduzir os impactos econômicos desta crise. Mas não acreditamos que o melhor caminho seja a adoção de sanções unilaterais e seletivas, contrárias ao Direito Internacional. Essas medidas têm prejudicado a retomada da economia e afetado direitos humanos de populações vulneráveis, inclusive em países da própria Europa", disse Bolsonaro.

O brasileiro ainda defendeu de forma vaga um cessar-fogo entre as partes do conflito. "Defendemos um cessar-fogo imediato, a proteção de civis e não combatentes, a preservação de infraestrutura crítica para assistência à população e a manutenção de todos os canais de diálogo entre as partes em conflito. Esses são os primeiros passos para alcançarmos uma solução que seja duradoura e sustentável."

Retrato enganador da proteção ambiental

Ainda na linha de elogiar o seu próprio governo, Bolsonaro exaltou o agronegócio brasileiro e tentou passar a imagem que sua gestão age para preservar o meio ambiente. 

"Há quatro décadas, o Brasil importava alimentos. Hoje, somos um dos maiores exportadores mundiais", disse Bolsonaro. "Quero lembrar que, também na área do desenvolvimento sustentável, o patrimônio de realizações do Brasil é fonte de credibilidade para a ação internacional do nosso país. Em matéria de meio ambiente e desenvolvimento sustentável, o Brasil é parte da solução e referência para o mundo", continuou o presidente.

"Dois terços de todo o território brasileiro permanecem com vegetação nativa, que se encontra exatamente como estava quando o Brasil foi descoberto, em 1500. Na Amazônia brasileira, área equivalente à Europa Ocidental, mais de 80% da floresta continua intocada, ao contrário do que é divulgado pela grande mídia nacional e internacional", disse Bolsonaro.

Ao longo dos últimos anos, o governo Bolsonaro foi criticado internacionalmente por desmontar mecanismos de proteção ambiental e indígena, além de estimular a exploração da Floresta Amazônica. O presidente chegou a visitar uma área de garimpo ilegal, defendeu a exploração mineral de terras indígenas e se posicionou contra a destruição de equipamentos apreendidos em operações do Ibama. No ano passado, seu então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, deixou o governo após ser acusado de beneficiar contrabandistas de madeira extraída ilegalmente.

Ainda em contraste com o retrato de proteção do meio ambiente pintado pelo presidente, o sistema que monitora queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais (Inpe) detectou 74,7 mil focos de incêndio na Amazônia entre 1º de janeiro ano e 17 de setembro de 2022 - um aumento é de 51% em relação ao mesmo período do mesmo passado, e o pior número para o período desde 2010.

Mais elogios e acenos para segmentos do eleitorado

Em outro trecho do discurso, Bolsonaro se pintou como "um defensor incondicional da liberdade de expressão", apesar de seu governo ter ganhado notoriedade por dificultar o trabalho da imprensa, impor sigilos sobre assuntos de governo e sistematicamente direcionar ataques contra jornalistas, especialmente mulheres.

Na sequência, Bolsonaro falou que seu governo "tem trabalhado para trazer o direito à liberdade de religião para o centro da agenda internacional de direitos humanos", novamente evitando mencionar que sua administração se notabilizou por descartar preceitos do Estado laico e por privilegiar segmentos religiosos que apoiam seu governo.

Num afago para o eleitorado católico, segmento no qual Lula está à frente nas pesquisas, Bolsonaro disse que seu governo tem a intenção de "acolher os padres e freiras católicos que têm sofrido cruel perseguição do regime ditatorial da Nicarágua". "O Brasil repudia a perseguição religiosa em qualquer lugar do mundo”, disse.

Bolsonaro direcionou outros trechos do seu discurso a sua base de apoio, afirmando que é a favor de armar a população e contra o aborto e a "ideologia de gênero".

"Outros valores fundamentais para a sociedade brasileira, com reflexo na pauta dos direitos humanos, são a defesa da família, do direito à vida desde a concepção, à legítima defesa e o repúdio à ideologia de gênero", disse Bolsonaro.

Bolsonaro em culto evangélico com sua mulher, Michelle
Bolsonaro em culto evangélico com sua mulher, Michelle. Presidente deixou de lado princípios do Estado laico ao longo do seu governo para afagar segmentos religiososFoto: Isac Nóbrega/PR

O presidente ainda mencionou em tom de elogio sua mulher, Michelle, que tem atuado sistematicamente na campanha eleitoral para tentar diminuir a rejeição que Bolsonaro sofre entre o eleitorado feminino - até agora, a julgar pelas pesquisas, ela não tem tido sucesso

"Trabalhamos no Brasil para que tenhamos mulheres fortes e independentes, para que possam chegar aonde elas quiserem. A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, trouxe novo significado ao trabalho de voluntariado desde 2019, com especial atenção aos portadores de deficiências e doenças raras", disse.

Ainda de olho no voto feminino, Bolsonaro disse: "Combatemos a violência contra as mulheres com todo o rigor. Isso é parte da nossa prioridade mais ampla de garantir segurança pública a todos os brasileiros", continuou Bolsonaro. 

Porém, seu governo cortou 90% das verbas disponíveis para ações de enfrentamento à violência contra a mulher. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, a verba destinada ao Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos para proteção das mulheres caiu de R$ 100,7 milhões, em 2020 para R$ 30,6 milhões em 2021. Em 2022, o valor caiu ainda mais, sobrando apenas R$ 9,1 milhões.

Por fim, o presidente ainda exaltou a forma como ocorreram as celebrações dos 200 anos de Independência do Brasil, no último 7 de Setembro, quando seu governo instrumentalizou o evento como um ato de campanha pró-Bolsonaro

"Neste 7 de setembro, o Brasil completou 200 anos de história como nação independente. Milhões de brasileiros foram às ruas, convocados pelo seu presidente, trajando as cores da nossa bandeira", prosseguiu Bolsonaro, que encerrou seu discurso com o bordão "um povo que acredita em Deus, pátria, família e liberdade", que críticos já apontaram que são iguais aos lemas usados pelo antigo grupo fascista Ação Integralista Brasileira e a ditadura do português Antônio Salazar.

Último discurso na ONU?

Essa foi a quarta vez que Bolsonaro discursa na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas - mas a julgar pelas pesquisas eleitorais, que mostram Lula como favorito a vencer o próximo pleito presidencial, essa pode ser a derradeira fala do líder de extrema direita na sede da organização em Nova York. 

O discurso de Bolsonaro nesta terça-feira seguiu uma linha similar às falas do presidente nas aberturas da Assembleia-Geral da ONU em 2019, 2020 e 2021. Nas ocasiões anteriores, o brasileiro também havia feito elogios à sua gestão na área ambiental e da saúde – apesar de os números nessas áreas mostrarem um cenário desolador.

No seu primeiro ano como presidente, em 2019, Bolsonaro disse que era uma "falácia dizer que a Amazônia é um patrimônio da humanidade", atacou o que chamou de "ambientalismo radical" e usou o palco internacional para falar de temas que têm apelo entre seus apoiadores brasileiros, entre eles membros da direita nacionalista e setores evangélicos. Na ocasião, ele mencionou o "Foro de São Paulo" – um tema que alimenta teorias conspiratórias nesses setores – e também afirmou falsamente que o Brasil estava "à beira do socialismo" antes do seu governo.

Em 2020, com a abertura ocorrendo de maneira virtual por causa da pandemia, Bolsonaro usou a ocasião para mais uma vez atacar ambientalistas. Ele disse que era vítima de uma campanha de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal e, sem apresentar provas, culpou indígenas e caboclos por incêndios nesses biomas. 

Em 2021, foi a vez de Bolsonaro usar o palco da ONU para defender o desacreditado "tratamento precoce" promovido pelo seu governo, que consiste num coquetel de drogas ineficazes contra a covid-19, e para atacar o passaporte sanitário.

Tradicionalmente, desde 1949 cabe ao Brasil fazer o discurso de abertura, seguido dos Estados Unidos. O primeiro chefe de Estado brasileiro a falar no encontro foi João Baptista Figueiredo. Desde então, somente Itamar Franco não chegou a discursar na Assembleia Geral da ONU.

O novo discurso ocorreu em um novo momento de intensificação do isolamento internacional do governo Bolsonaro. Em 2019, 2020 e 2021, o presidente brasileiro já havia falado em ocasiões delicadas, marcadas pelo derretimento da imagem do país por causa do desmonte de políticas ambientais, queimadas e ataques a líderes de outras nações.

Desta vez, o cenário não é diferente. Em Nova York, o líder brasileiro só tem reuniões bilaterais previstas com dois presidentes, o equatoriano Guillermo Lasso e o polonês Andrzej Duda, que representam países sem qualquer peso para a economia brasileira.