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EsporteBrasil

Morte de Pelé reafirma hegemonia e pioneirismo social

30 de dezembro de 2022

Um rei negro: reações à morte do astro brasileiro dão dimensão do lugar que ele conquistou em vida. Críticas por omissão política se diluem em meio ao reconhecimento do legado disruptivo no país marcado pela escravidão.

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Pelé em jogo, em foto de agosto de 1969
Foto: AP Photo/picture-alliance

A morte de Pelé, nesta quinta-feira (29/12), envolveu o mundo em uma onda de comoção. O sentimento atravessou gerações de ídolos do esporte, de Franz Beckenbauer a Kylian Mbappé, que reverenciaram o rei do futebol e lamentaram sua perda. Alguns dos principais líderes globais, como Barack Obama, Joe Biden e Emmanuel Macron, também prestaram homenagens ao astro brasileiro.

No Brasil, a grandeza de Pelé foi lembrada por colegas da seleção tricampeã do mundo em 1970 e atletas em atividade, como Vinicius Jr. e Neymar. O atual dono da camisa 10 brasileira exaltou a relevância que o número adquiriu pela associação ao talento do ídolo.

No plano político, Bolsonaro e Lula enalteceram sua contribuição ao esporte e à imagem internacional do país, respectivamente. O atual presidente decretou luto oficial de três dias.

A repercussão da partida de Pelé parece ter consolidado em definitivo a imagem de maior jogador de todos os tempos. Foi esse o tratamento dado por grande parte da imprensa internacional, ainda que de forma mais tímida na Argentina. O triunfo da seleção de Messi no Catar incitou debates sobre a hipótese de que o craque contemporâneo tivesse ultrapassado o brasileiro, em uma era de maior competitividade do futebol.

A dificuldade de estabelecer comparações entre atletas de épocas tão distintas é potencializada pelo longo tempo decorrido desde a aposentadoria de Pelé, há 45 anos. Ao longo de sua carreira, o nível técnico da transmissão e gravação de jogos evoluiu consideravelmente, mas a disponibilidade de imagens daquele período é muito restrita. Alguns de seus gols antológicos só são conhecidos por relatos de quem os presenciou.

Uma importante testemunha da carreira de Pelé é o jornalista João Máximo, de 87 anos, que começou a atuar na imprensa esportiva no início dos anos 1960. Enquanto apreciador da beleza singular do futebol em diferentes épocas, ele se posiciona criticamente sobre a criação de rankings entre os jogadores. Mas derrete-se ao falar sobre as qualidades de Pelé em campo.

Um ícone chamado Pelé

"O Pelé tinha todas as virtudes que um atacante tem que ter. A sua posição diante do gol era tão fatal, tão inevitável, que quando não aconteceu, tornou-se um grande momento em sua carreira. Ele ficou famoso não só pelos gols que marcou, mas pelos gols que ele não fez também", comenta.

Máximo recorda que Pelé dava enorme trabalho aos defensores por associar velocidade, força física, equilíbrio corporal e tempo de bola – a capacidade de prever onde irá cair, para se antecipar aos adversários. A exuberância técnica do jogador  projetou para o mundo a potência de um país, materializada na conquista de três Copas do Mundo.

"O Pelé simboliza essa grandeza que o Brasil não teve em outros setores da sua vida. Ele é mais do que um símbolo, é a própria realidade disso, porque o Pelé existiu. O Pelé não foi um sonho. A perfeição que se cobrava de toda uma seleção brasileira acabou se encontrando no Pelé", analisa.

Embora tenha se tornado uma espécie de embaixador do Brasil no plano esportivo e cultural, o astro não utilizou sua influência dentro e fora do país para se levantar contra injustiças que assolam a sociedade brasileira.

Seu gesto público de maior relevância foi uma aparição na TV durante a campanha das Diretas Já, em 1984, quando declarou apoio ao movimento que pedia eleições diretas e o fim da ditadura militar. Após a conquista da Copa de 1970, ele e os demais atletas da seleção haviam posado para uma foto oficial com o ditador Emilio Garrastazu Médici.

"Em lugares que eu passo ou chego, em aeroporto, restaurante, quando a gente vai almoçar, é uma coisa engraçada, porque os caras misturam as coisas, vêm me cobrando. Vem cá, eu era jogador de futebol, gostava de jogar, gostava muito, mas eu não sou político, eu sou brasileiro", disse em um documentário da Netflix lançado em 2021.

Um rei negro

Mesmo sem adotar uma postura combativa no plano político, a representatividade de Pelé deixou um legado imensurável. Em um país forjado pela escravidão, a chegada de um menino negro e pobre ao estrelato abriu novos horizontes de possibilidades para seus pares.

O jurista Silvio Almeida, indicado por Lula para comandar o Ministério dos Direitos Humanos, exaltou no Twitter os caminhos inaugurados pelo jogador.

"Pelé foi a primeira coisa que me fez gostar do Brasil. Ver um homem negro e brasileiro, como eu, sendo indiscutivelmente o melhor no que fazia me fez acreditar que apesar de tudo, havia algo em que acreditar. Ele foi o sonho que se fez matéria. Obrigado, Pelé, obrigado Rei!", publicou.

Na mesma linha, o rapper Mano Brown, porta-voz da luta antirracista no Brasil, recordou a imagem empoderada de Pelé em suas memórias de infância. O artista sempre defendeu o atleta do que considera uma cobrança exagerada por posicionamentos políticos.

Para a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, colunista da DW e autora do livro Racismo Brasileiro: Uma história da formação do país, Pelé entendeu que parte do seu sucesso estava condicionado a não se posicionar de forma mais veemente em relação às questões sociais.

"Essa posição que ele teve foi muito bem pensada, de um homem negro que sabia jogar minimamente o jogo do racismo no Brasil. Nesse sentido e em vários aspectos, ele foi vencedor. É um homem negro que virou símbolo do Brasil, um país que se projetou branco em diversos momentos da sua história. Isso é fruto de uma leitura muito sofisticada que ele fez em relação ao funcionamento do Brasil", avalia.